Nas duas últimas semanas, uma miríade de ações da polícia e órgãos de controle trouxe à tona um problema grave e histórico que vinha sendo negligenciado tanto por autoridades quando por comerciantes e consumidores: a amplitude da falsificação de bebidas alcoólicas no Brasil e o completo descontrole da situação.
As medidas emergenciais das autoridades vieram após a “crise do metanol”, com a confirmação de cinco mortes e pelo menos outra dezena em investigação por contaminação pelo uso da substância em São Paulo, com 17 casos de intoxicação confirmados e mais de 200 notificações, a maioria ainda em análise em todo o país, de acordo com informações divulgadas na última segunda-feira (6) pelo Ministério da Saúde.
De acordo com o secretário da Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite (Progressistas-SP), 17 locais estão em investigação por possível envolvimento nos casos de contaminação de bebidas alcoólicas por metanol no estado. Destes, duas distribuidoras de bebidas foram alvo de operações policiais e fechadas após a perícia constatar que havia metanol em amostras de produtos apreendidos no local, conforme afirmou o secretário na terça-feira (7).
Por suspeita de adulterar bebidas alcoólicas, 11 estabelecimentos foram interditados cautelarmente no estado, incluindo bares, adegas e distribuidoras. Na última segunda-feira, a Polícia Civil de São Paulo apreendeu 316 mil rótulos e mais de 3 mil garrafas de bebidas falsificadas em uma grande operação. Foram cumpridos 10 mandados de busca e apreensão nas cidades de Osasco, Americana, Sumaré e Poços de Caldas (MG).
Na quinta-feira da semana passada (2), uma fábrica clandestina de bebidas alcoólicas falsificadas foi fechada pela polícia em Jundiaí (SP). Foram encontrados quatro barris e 18 galões, metade deles parcialmente cheios. A Polícia Civil também apreendeu seis tambores de mil litros parcialmente cheios, mais de 400 galões vazios, 200 tampas para galões, 30 garrafas vazias, oito filtros de destilação e dois selos de importação.
Brasil fechou em média uma fábrica clandestina de bebidas alcoólicas a cada 5 dias, entre 2022 e 2024.
No Recife, outra fábrica clandestina de bebidas alcoólicas foi interditada pela polícia e dois homens foram presos, também no início desta semana. Foram apreendidos fogão industrial e soprador térmico, além de rótulos falsificados, bebidas adulteradas e eletrônicos que eram utilizados na produção das bebidas.
Os exemplos se espalham pelo país. De acordo com levantamento divulgado pelo Fantástico, o Brasil fechou em média uma fábrica clandestina de bebidas alcoólicas a cada 5 dias, entre 2022 e 2024.
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Uma busca na internet mostra, no entanto, que enquanto as autoridades se mexem para tentar dar uma resposta para a crise da contaminação por metanol nas bebidas em circulação e a sociedade se dá conta do tamanho do problema, a venda de garrafas, rótulos, tampas, lacres, equipamentos e insumos para a fabricação de bebidas falsificadas segue fora de controle na internet.
Nesta semana, a reportagem da Gazeta do Povo visitou os três principais sites de vendas diretas e marketplaces do país: Mercado Livre, Amazon e Shopee — que atuam tanto como vendedores diretos de produtos quanto como um espaço para outros comerciantes venderem seus artigos — e constatou que em todos eles é possível encontrar diversos anúncios com itens que podem ser utilizados para falsificar bebidas alcoólicas, assim como garrafas de bebidas destiladas cheias de marcas famosas, por preços anormalmente abaixo da média em sites oficiais de grandes redes de supermercados.
Um dos anúncios visitados nos sites pela reportagem no Mercado Livre, por exemplo, vende por R$ 21 um rolo de rótulos resinados em tamanho oficial para garrafas do uísque norte-americano Jack Daniels. Outro anúncio, no mesmo site, oferece 20 garrafas vazias e sem o rótulo do mesmo uísque, com o nome gravado em alto relevo no vidro, por R$ 60.
Na Shopee, a reportagem da Gazeta do Povo encontrou, dentro outros do gênero, um anúncio de um lote variado de garrafas vazias de bebidas destiladas famosas como uísques, cachaças, gins e outras. Nas compras em grande quantidade, cada uma sai por R$ 3.
Na Amazon, um kit com 24 minigarrafas de 50 ml “tipo Jack Daniels” com tampas sai por R$ 119,99 com entrega grátis. Em outro, o mesmo kit é oferecido por R$ 78,99. Nos três sites, é possível encontrar opções de adesivos iguais ou semelhantes aos originais para completar a falsificação.
Os itens para falsificação, como rótulos, tampas e garrafas, por exemplo, geralmente são vendidos em separado nos marketplaces, como itens para colecionadores. Já prontas, as bebidas falsificadas também podem ser encontradas na internet, com preços muito mais baratos que os dos produtos originais.
Em um dos três grandes sites pesquisados, uma garrafa do uísque Jack Daniels, vendido por cerca de R$ 130 nos grandes supermercados, chega a custar R$ 70 de alguns vendedores desconhecidos.
“É inaceitável que um marketplace venda produtos que sabidamente são utilizados para a prática de crimes ou adulterações e falsificações, que podem inclusive causar a morte de consumidores”, afirma o advogado Arthur Rollo, especialista em Direito do Consumidor, ex-secretário Nacional do Consumidor do Ministério da Justiça e ex-presidente do Conselho Nacional de Combate à Pirataria.
“Normalmente esses produtos são denunciados por consumidores às plataformas, que mantêm eles no ar porque trazem lucro. As plataformas deviam agir ativamente para impedir a circulação deste tipo de produto em seus sites, mas sistematicamente o que vemos é que não fazem nada ou muito pouco”, afirma o advogado.
De acordo com ele, constatado o problema e a inação da plataforma, caberia até uma multa administrativa com base no artigo 56 do Código do Consumidor, “sem prejuízo de eventuais ações criminais e cíveis.”
Após crise do metanol, Mercado Livre suspende temporariamente parte das vendas
Procurada pela reportagem, por meio de sua assessoria de imprensa, a Shopee afirma em nota que cumpre todas as leis locais e também exige que os vendedores no marketplace as cumpram. “Temos sistemas para identificar e remover anúncios irregulares e, quando identificados, eles são imediatamente suspensos. Mesmo quando não há ilegalidade, ficamos sempre atentos a acontecimentos e situações que possam oferecer riscos aos nossos usuários e tomamos as medidas cabíveis de acordo com cada situação”, diz o comunicado.
O Mercado Livre, também por meio de nota enviada pela assessoria de imprensa, anunciou que está suspendendo temporariamente a venda de todas as bebidas alcoólicas destiladas no site, assim como a venda de garrafas vazias, rótulos e outros acessórios, até que a idoneidade do vendedor seja confirmada ao site pelos próprios fabricantes das bebidas.
“Apenas vendedores autorizados, informados ao Mercado Livre por marcas e fabricantes oficiais, poderão anunciar bebidas alcoólicas destiladas enquanto essa medida estiver vigente. Para isso, é necessário que o vendedor entre em contato com seu fornecedor ou com a marca oficial e solicite que o Mercado Livre seja informado sobre sua autorização para vender”, afirma a nota da empresa. “Estamos em constante diálogo com as autoridades e monitorando a situação para garantir que nossas políticas estejam alinhadas com as melhores práticas de segurança e as regulamentações vigentes.”
Procurada por meio de sua assessoria de imprensa, a Amazon declara que trabalha exclusivamente com fornecedores verificados que atendem rigorosos padrões de segurança. “Levamos a proteção dos nossos clientes a sério e mantemos supervisão constante de nossa cadeia de fornecimento”, diz a nota enviada pela empresa. “Estamos monitorando ativamente as discussões relacionadas ao tema. Caso haja quaisquer atualizações nas diretrizes regulatórias, comunicaremos prontamente essas informações para garantir a segurança e o bem-estar de nossos clientes”, completa o comunicado.
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“Vamos atuar de forma bastante incisiva através da Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor, justamente naquele setor de fraudes cometidas pela internet”, afirmou o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, na última terça-feira. “Ou seja, a venda de rótulos, de lacres, de tampas e de garrafas de bebidas que podem servir para a adulteração das bebidas.”
O ministro reiterou que esta é uma área que precisa ser atacada, “porque é aí que temos grande parte da origem das bebidas adulteradas”. A declaração foi feita após reunião com diversos representantes de órgãos do governo federal com diversos representantes do setor de bebidas, como a Associação Brasileira de Bebidas (Abrabe), a Associação Brasileira de Bebidas Destiladas (ABBD), a Confederação Nacional da Indústria (CNI), o Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP), a Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF) e o Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (Sindicerv).
A Advocacia-Geral da União (AGU), por meio da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia (PNDD), divulgou no domingo (5) que notificou a empresa Meta, responsável pelo Facebook e pelo Instagram, para que adote medidas imediatas de bloqueio e remoção de conteúdos e grupos que promovem a venda ilegal de lacres, tampas, rótulos e garrafas de bebidas alcoólicas.
A iniciativa ocorre após reportagem da BBC News Brasil revelar, no último dia 3, a existência de um intenso comércio clandestino desses materiais na plataforma, usados na falsificação de bebidas com substâncias tóxicas como o metanol. Até a terça-feira (7), a Meta não havia se pronunciado sobre a reportagem e nem sobre a ação da AGU.
Em nota conjunta divulgada nesta semana, a Federação de Hotéis, Restaurantes e Bares do Estado de São Paulo (Fhoresp) e a Associação Brasileira de Combate à Falsificação (ABCF) defendem a volta do Sistema de Controle de Produção de Bebidas (Sicobe) da Receita Federal, extinto em 2016, e que tinha com principal função o rastreamento das bebidas.
As entidades afirmam no documento que o cenário de intoxicações e de mortes causadas em consequência da contaminação por metanol, nos últimos dias, expõe a fragilidade da fiscalização e compromete a credibilidade do setor de bebidas e de alimentação.
Em resposta publicada em seu site, a Receita Federal diz que a correlação entre a crise do metanol nas bebidas e a desativação do sistema de controle é falsa. “O controle de destilados, como vodka, gin, whisky etc. é usualmente feito pela utilização de selos, que não têm relação, nem se confundem com o Sicobe. O Sicobe controlava, preponderantemente, refrigerantes e cervejas”, diz a Receita no comunicado.
A falsificação de destilados cresceu 25,8% entre 2023 e 2024, de acordo com a ABCF, e atinge 36% das bebidas comercializadas, conforme estudo divulgado pela Fhoresp em abril deste ano.
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Fonte: Gazeta do Povo