“Eu Capitu” chega a Salvador com nova leitura de Machado –
Tudo que se sabe sobre Capitu, uma das personagens mais famosas do romance Dom Casmurro, do escritor Machado de Assis, é por meio da visão de Bentinho, protagonista da obra. Se na literatura não foi possível dar voz para a personagem, no teatro, ela finalmente ganha espaço. Isso porque, desta sexta, 10, até domingo, 12, chega em Salvador o espetáculo Eu Capitu. As apresentações vão acontecer no Teatro Jorge Amado com entrada gratuita. Os ingressos podem ser adquiridos na plataforma Sympla.
Com texto de Carla Faour e direção de Miwa Yanagizawa, o espetáculo revisita o clássico da literatura sob uma perspectiva contemporânea e crítica, dando voz à enigmática Capitu e, com ela, a todas as mulheres silenciadas ao longo do tempo. A obra já percorreu diversas capitais brasileiras lotando teatros e instigando debates sobre o papel da mulher na literatura, na história e na sociedade.
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“Pensar Eu Capitu livre da narrativa machadiana tradicional foi um ato de libertação criativa e política. Aqui, Capitu tem voz, corpo, presença, ela não é mais personagem de Bentinho: ela é personagem de si mesma e também um espelho para a jovem Ana, que tenta entender sua própria história através dessa figura literária”, explica a diretora Miwa Yanagizawe.
A história
A peça conta a história de Ana, adolescente que busca refúgio em seu mundo imaginário para escapar do ambiente de violência doméstica em que vive. Sua mãe, Leninha, enfrenta um relacionamento abusivo, situação que impacta diretamente a vida da filha.
Obrigada a estudar Dom Casmurro para uma prova decisiva, Ana encontra no romance pontos de contato com sua realidade. É nesse cruzamento entre ficção e vida que surge em cena Capitu, figura icônica da literatura brasileira, agora livre para falar em primeira pessoa.
Esses encontros entre Ana e Capitu se transformam em um rito de passagem para a menina e um espelho para o público: até que ponto o olhar masculino molda não apenas os livros, mas também o cotidiano, a política, a arte e as relações?
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Com 90 minutos de duração, Eu Capitu aposta em um universo simbólico e poético para tratar de temas urgentes como machismo, feminicídio e silenciamento das mulheres. “Logo de início, entendi que não queria uma peça realista. Se o assunto era muito duro e pesado, eu queria falar de uma forma doce e lúdica com a criação de um universo simbólico e metafórico”, explica a dramaturga Carla Faour.
A atriz Flávia Pyramo explica que precisou revisitar a obra para dar vida para a personagem. “Eu fui abrir o livro, Dom Casmurro, fui rever essa história. Agora com mais do que nunca, a partir dos olhos de Capitu, olhando para ela de uma outra forma.
Ela ainda reflete sobre as transformações do feminino ao longo do tempo e sobre como a peça dialoga com essas mudanças. Para ela, Eu Capitu representa um salto significativo em relação à forma como as mulheres eram retratadas na época de Machado de Assis. “Ali a gente tem, naquele momento ainda, a mulher num lugar muito submisso, onde o julgamento da sociedade é crítico às mulheres sem liberdade, sem essa força feminina vibrante — e é impressionante como isso incomoda”, observa.
Ela acredita que, embora hoje exista uma geração de mulheres mais livres e independentes, ainda há uma luta constante contra uma visão castradora e opressora que persiste há séculos. Flavia enxerga no trabalho uma oportunidade de aprendizado mútuo: “A minha relação com as personagens é muito sobre o que eu aprendo com elas e como consigo compartilhar isso com o público”, explica.
Entre delicadeza e denúncia
A atriz destaca que a força de Capitu e Leninha revela a potência do “feminino liberto”, algo que, segundo ela, é essencial para romper com os julgamentos externos e fortalecer a autoestima. “Não é o outro que dita o meu valor, não é o outro que define quem eu sou”, afirma. Para Flavia, esse processo é um exercício de confiança, simplicidade e liberdade, uma busca por não mais ser vítima do olhar e do julgamento alheio.
Para a diretora , ao abordar temas tão pesados como violência doméstica, relações abusivas e o silenciamento feminino, era essencial não cair em dois extremos: nem na banalização da dor, nem na dureza explícita que pudesse retraumatizar o público. Por isso, a escolha foi por uma linguagem simbólica, poética e sensorial, que permitisse falar de assuntos difíceis sem recorrer a um choque visual ou à uma exposição direta.
Segundo ela, a estética do espetáculo é uma experiência de acolhimento. E isso se revela na sensibilidade da direção de arte, iluminação, na trilha sonora e na atuação das atrizes que dão espaço para a escuta e a imaginação do público.
Essa delicadeza não suaviza o tema, pelo contrário, cria aberturas para que ele reverbere com mais força emocional, ao tocar de maneira mais íntima e menos defensiva.
Projeto nascido da urgência
A concepção de Eu Capitu partiu de uma experiência pessoal do produtor Felipe Valle, que, após presenciar um episódio de violência doméstica, viu-se impotente diante da falta de acolhimento da denúncia feita à polícia. “Ao reler Dom Casmurro nesse contexto, percebi o quanto a obra carregava em si violências veladas contra as mulheres. A ideia foi trazer esse material para a cena, mas desta vez pelo olhar e pela voz feminina”, conta.
Assim nasceu o convite para que mulheres, autoras, diretoras, atrizes e criadoras – conduzissem a montagem, propondo um teatro que não apenas revisita um clássico, mas o reinventa a partir de uma perspectiva crítica e atual.
Para Carla, mais do que dar respostas, a peça foi concebida para provocar reflexão, deslocamento e escuta.
“A história de Capitu, de Ana e Leninha, personagens da peça, não termina no palco. Espero que essa abordagem ajude o público a perceber que a violência contra a mulher não começa no ato final, mas no discurso, no olhar enviesado, na dúvida imposta e no silenciamento constante”, afirma.
“Ao dar voz a Capitu, a peça deseja dar voz a muitas. Desejo que o público perceba como fomos condicionados, durante séculos, a aceitar como verdade única a versão masculina da história, não só na literatura, mas na vida”, completa.
Hoje, às 19h30, haverá uma sessão exclusiva para escolas, universidades e projetos sociais, não aberta ao público geral.
No sábado, 11 de outubro, às 20h, será realizada uma apresentação aberta ao público, seguida de uma roda de conversa com a equipe artística e de produção.
Já no domingo, 12 de outubro, também às 20h, acontece a apresentação acessível, que contará com recursos de Libras e audiodescrição.
Eu Capitu foi aprovado na Seleção Petrobras Cultural e conta com recursos através da Lei Federal de Incentivo à Cultura, do Ministério da Cultura, Governo Federal.
“Eu Capitu” + Oficinas Formativas / Amanhã e domingo (12), 20h (apresentação + roda de conversa) / Teatro Jorge Amado / Ingressos: Gratuitos, via Sympla / Apresentação acessível com Libras e audiodescrição / Classificação: 14 anos
*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
Fonte: A Tarde