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Você pode ser um velho comunista e nem sabia

O jornalista, professor e escritor Emiliano José é quem nos conta em seu recente livro e, a princípio, nos assusta, mas todo susto passa. É que nem soluço. E, se não passa, vez em quando mata. Pois não é que, nos corredores abafados dos jornais baianos dos anos 70, onde a censura caminhava com botas pesadas e o ar cheirava a fumaça de cigarro e tensão, havia também uma figura “pitoresca” — embora ninguém risse na época. Um espiãozinho da ditadura, desses que hoje não fariam sombra nem a um porteiro de repartição, circulava entre mesas e linotipos com seu bloquinho suado. Suvaco suado, a roda de pizza na camisa. Um que conheci bem vestido. Outros no trivial. Em comum, pisavam forte e entravam na sala da diretoria ou editor-chefe como se fossem donos da casa. Nos acostumamos a eles. Eu só tinha 17 anos.

Eu sabia da ditadura e não entendia muito de democracia. Lembrava de meus tios correndo na madrugada do dia 1º de abril de 1964 — eu criança — para queimar documentos lá em cima das dunas, no areal da Boa Viagem. E, pasme, colado ao muro da Vila Militar dos Dendezeiros e a alguns poucos quilômetros do Quartel do Exército do Mont Serrat. Aos 13 anos, sem saber direito, num efeito manada, fui conduzido junto com centenas de colegas da mesma idade da porta do colégio onde eu estudava, arregimentando estudantes do Iceia, do Colégio Central e do Severino Vieira, para enfrentar os militares na Praça da Sé. Não entendia direito, mas fui convencido por uma comunista de carteirinha que vim saber, anos depois, na redação da Tribuna da Bahia, que era conhecido como Mini Hippie (estará vivo? Qual o nome dele? Morava na Rua da Imperatriz). Cara simpático, amigo.

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Mas não foi por causa dos olhos inchados de gás lacrimogêneo ou da camisa do colégio suja e rasgada que levei uns tabefes do meu pai que fiquei com raiva da ditadura militar. Isso só aconteceu anos mais tarde, quando, nas redações por onde passei, fiz amizade com alguns colegas que foram torturados e mostravam as sequelas. Eu agora era de esquerda, mas não era comunista. Tanto que, no início dos anos 1970, lancei meu primeiro livro, “Cemitério de Cães Noturnos”, e pedi autorização ao empresário e escritor Joaci Góes para imprimir, com resto de papel das bobinas na oficina da Tribuna da Bahia, um cartaz de divulgação: “Revolte-se. Leia o livro Cemitério de Cães Noturnos”. Foram colados em postes da cidade na calada da noite. Ainda hoje tem um postado na parede das oficinas da TB. Foi meu único gesto de insatisfação explícito. Ninguém deu bola. O resto eu faria nas reportagens de cunho social, sem perder a essência do fato jornalístico.

Nunca fui comunista até o dia em que o excelente escritor e historiador Emiliano, com quem eu tinha relação mas ainda não éramos amigos — na maioria das vezes a gente se encontrando nas entrevistas coletivas — me veio com este fabuloso livro que você deve ler para não perder o bonde da história. E lá estou indiciado por um espião de redação que me coloca (eu até podia ficar orgulhoso, a essa altura da vida) como comunista que procurava detonar a imagem das instituições e participante do “esquema”. Um tal de “esquema” que eu nem sabia, nem mesmo quando, vez em quando, namorava alguma menina comunista e nem mesmo quando, sem querer, descobri o codinome do meu saudoso amigo e colega Aurélio Vellame, e ele morreu de rir. Descobri por acaso, fazendo uma brincadeira com ele que nada tinha a ver com política; ele ficou vermelho (sem trocadilho). Era nosso segredinho.

Pois o tal do espião, no maior estilo “Corra que a polícia vem aí” ou “Agente 86”, levava a sério sua missão de farejar comunistas, mas sua competência lembrava mais um personagem de comédia pastelão do que um agente secreto. Interpretava tosses como senhas revolucionárias e cochichos como conspirações. E ia juntando tudo, sem filtro: fofocas, piadas internas, comentários sobre futebol. Virou um colecionador de bobagens com verniz de perigo. Décadas depois, quando os cadeados dos porões começaram a enferrujar e as gavetas da história se abriram, o dossiê do nosso espião caiu em mãos melhores que as dele: as do jornalista e escritor Emiliano José. Aquele monte de papéis amarelados — recheados de confusões épicas, como a de confundir militante com quem só passava para deixar um release, fumar “umzinho” ou pesquisar uma página — acabou servindo de fermento para um belo livro. Não um tratado sisudo, mas uma crônica pulsante. Assim nasceu Os comunistas estão chegando, o 17º broto de Emiliano, que está à venda depois de prestigiado lançamento no Museu de Arte da Bahia.

O livro, também em versão digital, é uma visita guiada a 18 histórias de jornalistas que misturaram idealismo, juventude, mocotó, cerveja, uísque e café ralo, ou disputavam Remington nas precárias redações, para enfrentar os tempos da tesoura afiada da censura. Lá estão Jadson Oliveira, Alex Ferraz, José de Jesus Barreto, Falcón, Mirtes, Manfredini, Jambeiro, Joca, Fred Matos, Césio Oliveira, Menezes (meu chefe mais irônico) e muitos outros — uma turma que fez das redações de Salvador uma espécie de república intelectual onde, para mim, repórter saindo da adolescência, eles conspiravam, sim, mais contra a mediocridade do que contra o regime. Não era uma turma do barulho. Claro que, com o passar do tempo, fui sabendo das atividades corajosas e muitas heroicas destes colegas e amigos em plena era de chumbo.

O livro é o segundo volume da série “#MemóriasJornalismoEmiliano”, que nasceu de posts diários no Facebook do autor desde 2019. Emiliano, sempre maroto, avisa: “Não leiam só o texto principal. Ignorar os comentários é pecado.” E não é exagero. Ali, nas réplicas e tréplicas virtuais, mora um coro de memórias que desafia o tempo. O autor chama isso de “formato matrioska”: uma história dentro da outra, como bonecas russas que, vez por outra, resolvem conversar entre si.

O primeiro volume da série, “Balança, mas não cai”, tratava dos próprios tropeços e voos de Emiliano ao voltar ao jornalismo depois de quatro anos de prisão e tortura. Já agora, em Os comunistas estão chegando, ele amplia o foco e abraça a tribo inteira. No prefácio, o ex-diretor da Associação Bahiana de Imprensa Ernesto Marques lembra que o mergulho nos anos 70/80 não serve só aos saudosistas: é um chamado para todos os que, de uma forma ou de outra, aprenderam que liberdade não é herança — é conquista.

A capa é outra história saborosa. Criada por Gabriel Galo, a partir de uma foto de Manoel Porto, mostra uma coletiva de imprensa com Luiz Carlos Prestes. Lá está Emiliano, jovem, microfone gigante na mão, um dos tais “comunistas” que o espião desastrado jurava vigiar. E a jornalista Mônica Bichara, com o capricho de quem sabe costurar memórias, organizou tudo no blog Pilha Pura antes de virar livro. Ela, Jaciara Santos, Joana Darck , Isabel Santos serão personagens de livro anunciado por Emiliano, que acho se chamará “As comadres”. Meninas retadas, aguardem.

Hoje, Emiliano ocupa a cadeira nº 1 da Academia de Letras da Bahia, herdada de Luís Henrique Dias Tavares. E deixa seu recado final com aquele humor sério que só sobreviventes dominam: “Não percam. Espiões rendem boas histórias, especialmente quando desmoralizados pela história, essa velha senhora.” Não deixe de ler. Seja você jornalista, estudante, historiador ou velho espião. Difícil é começar e parar a leitura.

*Escritor e jornalista



Fonte: A Tarde

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