Vinte e sete anos após ser abolida, a chamada “gratificação faroeste” voltou a ser tema em debate na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Os deputados aprovaram na última semana o retorno do bônus pecuniário para policiais civis que “matarem criminosos”.
A emenda foi inserida no projeto de lei nº 6.027/2025 que prevê a reestruturação do quadro permanente da Secretaria de Estado de Polícia Civil, enviado à Alerj pelo governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL). Com 45 votos favoráveis e 17 contrários, o texto aprovado prevê a premiação em dinheiro, por mérito especial de 10% a 150% dos vencimentos do policial em duas situações específicas: apreensão de armas de grande calibre ou de uso restrito em operações policiais e casos de “neutralização de criminosos”.
A proposta inicial de Castro não incluía o retorno da bonificação. Porém, o relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa, deputado Rodrigo Amorim (União), líder do governo na Alerj, inseriu a mudança por meio de uma emenda.
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Deputados defendem bonificação como forma de valorizar policiais e combater a “bandidolatria”
Entre as mais de 400 emendas apresentadas, três delas buscavam a recriação da bonificação. Além de Amorim, assinaram os deputados Marcelo Dino (União), Alexandre Knoploch (PL), Alan Lopes (PL), Célia Jordão (PL) e Dionísio Lins (PP).
O texto substitutivo ao projeto de Castro foi apresentado aos deputados sem discussão prévia na CCJ. Como a proposta foi votada em regime de urgência, tanto o parecer quanto a aprovação da comissão foram dados em plenário no mesmo dia.
“Nós sabemos que o Rio de Janeiro é um estado fora da curva, então apresentamos uma proposta que incentiva o nosso policial que sai de casa deixando quem ele tanto ama para proteger quem ele nem conhece. É a valorização desses policiais. Quando você implementa uma medida como essa, você incentiva esse policial”, disse Dino.
À Gazeta do Povo, Amorim explicou que a própria Polícia Civil deverá regulamentar a aplicação dessa bonificação. A corporação vai definir internamente os critérios técnicos para deferimento, implementação e pagamento. A Polícia Civil analisará cada situação individualmente e terá a responsabilidade de avaliar as condutas e conceder o direito previsto nesta lei, caso ela seja sancionada.
O deputado acusou a existência de uma cultura de “bandidolatria”, que é o amor aos marginais, protagonizada nas casas legislativas fluminenses pela bancada da esquerda. “Alegam que esses marginais que aterrorizam as famílias e o cidadão de bem no Rio de Janeiro são vítimas da sociedade”, disse.
O parlamentar do União Brasil afirmou que faz oposição a essa “bandidolatria” e reconhece que o policial é o verdadeiro herói. “Os policiais são a nossa última fronteira com o caos e, por isso, eles devem ser enaltecidos e ter a segurança jurídica preservada”.
Em relação às críticas sobre a proposta, Amorim rebateu o que considera como um “caráter ideológico por parte daqueles que insistem em defender bandidos”. Para o deputado, o intuito do projeto de lei é “enaltecer e diferenciar aqueles servidores que fazem seu trabalho com dedicação, afinco e heroísmo”.
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Autor da lei que extinguiu a medida critica retorno da “gratificação faroeste”
O governo do então governador do Rio de Janeiro Marcello Alencar instituiu em 1995 a “gratificação faroeste”, que incluía promoção por bravura e prêmios em dinheiro. Na época, policiais civis e militares, além de bombeiros, recebiam acréscimo salarial que variava de 10% a 120%.
O benefício durou três anos. Em 1998, uma lei de autoria do deputado Carlos Minc (PSB) derrubou a bonificação, considerada um incentivo à violência. Os agentes continuaram recebendo a chamada pecúnia até o ano 2000.
Na rede social X, Minc citou que, na época, a medida estimulava a execução sumária. “Dos mortos, alguns eram criminosos procurados, outros, não. No Brasil não tem pena de morte, quem tem que determinar a sentença é a Justiça”, escreveu.

Na opinião dele, o bom policial tem que investigar e prender e citou como exemplo uma lei de sua autoria sobre o disque-denúncia. “Ajudou a prender centenas de líderes de milícias e traficantes, sem precisar matar a população pobre da periferia”. Minc acrescentou que “sem a prova que a perícia produz, sem testemunha, sem a denúncia do disque-denúncia, a nossa polícia fica no ‘tiro, porrada e bomba'”.
Ele acredita que Castro não deve sancionar a lei conforme a versão aprovada no Legislativo estadual, por falta de informação sobre o impacto financeiro e sobre a fonte de recurso. Porém, afirmou que “se sancionar, já temos pronta uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin), pois este texto absurdo confronta três artigos da Constituição Federal”.
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MPF aponta inconstitucionalidade
O Ministério Público Federal (MPF) reforça a inconstitucionalidade, com o apontamento de três problemas principais à proposta. O órgão enviou o ofício nº 11793/2025, assinado pelo procurador da República Júlio José Araújo Júnior, ao governador do Rio de Janeiro. Por meio da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, o procurador manifestou preocupação com o teor do projeto de lei aprovado na Alerj.
Os problemas citados pelo MPF são:
- Vício de iniciativa: a concessão de gratificações não poderia ser proposta por deputados. Conforme previsão do art. 61 da Constituição Federal, são de iniciativa privativa do chefe do poder executivo as leis que disponham sobre a criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração.
- Descumprimentos de decisões do STF na ADPF 635: em 2020, o STF suspendeu normas estaduais que deixavam de considerar a redução da letalidade como parâmetro para avaliar o trabalho dos policiais. Desta forma, oferecer prêmios pela “neutralização de criminosos” vai contra essa decisão. A medida também desrespeita o que a ADPF 635 definiu sobre o controle da letalidade policial no Rio de Janeiro.
- Violação do direito à segurança pública: de acordo com o MPF, não há provas de que incentivar mortes torne a sociedade mais segura; ao contrário, essa prática intensifica a violência e enfraquece a confiança da população nas instituições. Para o órgão, pagar bônus por mortes estimula o uso desproporcional da força e eleva a letalidade, sem evidências de que traga benefícios reais para a segurança pública.
O ofício ainda destacou que “a contramão dessa perspectiva, a evocação da letalidade policial como fator de promoção da segurança pública carece de qualquer comprovação, além de gerar efeitos contrários ao prometido”.
A advogada criminalista e professora da FGV-Rio Maíra Fernandes, compartilha a opinião de inconstitucionalidade e afirmou à Gazeta do Povo que resgatar a bonificação é um retrocesso. Como exemplo, citou a pesquisa comentada por Minc.
Um estudo multidisciplinar sobre 1,2 mil laudos cadavéricos de pessoas mortas em confronto com a polícia teria mostrado que 64% se tratavam de execuções com tiros na nuca, na orelha ou nas costas. Na visão da criminalista, é preciso resgatar esses dados, pois, se a lei for sancionada novamente, esse quadro tende a se repetir.
O texto final aprovado pelos deputados estaduais foi enviado ao governador do Rio de Janeiro, que tem até 15 dias para tomar uma decisão. A Gazeta do Povo entrou em contato com a assessoria de imprensa do Executivo fluminense, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
Fonte: Gazeta do Povo